Cléria Wickert é natural de Iporã do Oeste e está no país africado há seis meses
Cléria Wickert, natural de Iporã do Oeste, é filha de Aloisio Matias Wickert e Ana Wickert, residentes na Linha Wickert. É religiosa da Congregação das Irmãs da Divina Providência, possui mestrado em psicologia, e já atuou em muitos lugares e estados brasileiros, principalmente na área da educação. Desde o mês de fevereiro está em uma missão na África, a pedido da Congregação, e nesta reportagem, traz detalhes sobre as experiências que vive nesse período em um país com culturas, costumes e vivências totalmente diferentes as quais estava habituada.
Em fevereiro de 2025 a religiosa desembarcou na Ilha de São Tomé, capital do pequeno país, São Tomé e Príncipe, na África. Este país é formado por duas Ilhas: São Tomé e Principe que ficam no oceano Atlântico próximo a países como Angola, Costa do Marfim e Gabão. Cléria ficou em São Tomé o tempo necessário para os tramites legais e em seguida embarcou em um pequeno avião com destino a Ilha de Principe, para começar uma nova experiência em sua vida.
Cléria explica que a Ilha do Principe é uma região autônoma, tem seu próprio presidente e há 50 anos se tornou independente, sendo antes colonizada por Portugal. Os vestígios da colonização portuguesa se encontram ainda hoje por toda a ilha, com muitas senzalas, casarões que eram ocupados pelos “senhores” do cacau. As senzalas são habitadas ainda hoje por inúmeras famílias. A ilha tem 9 mil habitantes e é um patrimônio mundial da Biosfera. Define que a natureza é encantadora, tem praias lindas e uma água transparente e quente, na maioria das vezes desertas.
Para a religiosa, uma das grandes virtudes dos africanos é a acolhida. “Nos primeiros dias você é conhecida como a “branca” pelas ruas, mas em poucos dias já te chamam pelo nome, fazendo com que você se sinta em casa. É um povo de sorriso fácil, que divide aquilo que tem para comer sem pensar no dia de amanhã, por mais que se fale o português de Portugal misturado com a língua nativa Lunguyê e o crioulo, é preciso treinar o ouvido para compreender a língua, além de falarem rápido, muitas palavras têm outro significado do português Brasileiro”, comenta.
O primeiro mês na África, foi para a religiosa de descobertas e adaptação. Pois a realidade é muito diferente da qual saiu, com calor excessivo e comida totalmente diferente da que é acostumada. O que considera ser uma das maiores dificuldades no início é a gastronomia, por ser uma comida quente, com grande variedade de temperos, principalmente a pimenta malagueta e a base é o peixe. Na ilha não existe carne de gado para comprar, não tem criação de gado e raramente tem carne de porco para vender. As pessoas comem muito macaco, tubarão entre outros animais. Entre as frutas o que mais se encontra é a banana, já verduras e legumes são bem escassos. As roças são muito pequenas e o povo quase não planta.
Aos poucos, Cléria afirma que foi se acostumando e aprendendo a amar a nova realidade. E com isso começaram a surgir propostas e oportunidades de trabalho. Além do trabalho pastoral nas comunidades com formação de lideranças e celebrações, no momento a religiosa presta apoio psicopedagógico às escolas, com palestras e escuta de adolescentes e jovens. A convite do governo, juntamente com a Secretaria de Assuntos Sociais e Capital Humano, presta assessoria na elaboração de projetos e na formação e empoderamento das mulheres. E ainda, em parceria com o Ministério Público faz a escuta das crianças abusadas, que é um número de casos muito elevado, porém pouco denunciado.
Para Cléria, o que mais lhe impacta da realidade na África é a sensação de ter voltado no tempo, 50 anos ou mais. “O que nossos pais e avós nos contavam de como viviam na sua infância e juventude, vejo hoje aqui na África. Não tem lojas, vitrines, supermercados, cinema, lanchonetes, apenas pequenas vendinhas, que vendem muitos enlatados em pequenas porções e os pacotinhos feitos de um kg e quando tem, sendo que na maioria das vezes falta durante o mês, principalmente quando o barco demora a chegar. Ainda poucos tem um celular, é artigo de luxo e quem tem ainda são aqueles aparelhos bem antigos que no Brasil já não existem mais. As roupas são costuradas, não tem lojas de roupas prontas, talvez um brechó de alguma doação que veio da Europa, mas em todas as esquinas existe um ateliê de costura. A televisão é outro artigo de luxo, poucos tem uma em casa e quem tem assiste programas do Brasil, principalmente o futebol e as novelas”.
A energia elétrica é a base de um gerador, e este é desligado todas as noites à meia noite e volta a ser ligado somente pela manhã. Poucas pessoas têm água encanada, e o restante da população se abastece nas bicas de água espalhadas na cidade e na zona rural. As louças e roupas são lavadas no rio pela maioria da população. Existem poucos carros e motos na ilha, não há transporte público e por isso quando as pessoas vão para o interior encontram muitos pedidos de “boleia”, que é a carona. As estradas são extremamente precárias, são abertas na enxada, picareta e na pá, algumas já com calçamento que é patrocinado pelo banco mundial e na cidade a rua principal que liga o aeroporto com um asfalto, mas cheio de buracos.
Apesar de poucos recursos, Cléria conta que as crianças inventam seus brinquedos, e são felizes com o simples. Cita que para as crianças, há pouca opção do que fazerem em casa, não há caixa de brinquedos, carrinhos, bonecas, videogames, televisão ou tecnologias. Brinquedo é aquilo que se acha na rua, se (re)constrói, se (re)cria e saem carrinhos de madeira de dar inveja a muitos marceneiros. Um embrulhado de sacolas com capim vira uma bola, e uma garrafa pet vira uma linda boneca, brincam muito na rua, no rio, nas árvores, são sorridentes e felizes.
Crianças e adolescentes que vão à escola chegam a caminhar 12 km, pois não existe transporte público e nem merenda escolar. Sem o material necessário para uma boa aprendizagem, a religiosa comenta que as bibliotecas têm no máximo 50 exemplares de livros para pesquisa e além disso a educação é rígida. Desde a educação infantil até o ensino médio se usa palmatória e o professor é autoridade, sendo muito respeitado em sala de aula. Nas ruas os alunos cumprimentam os professores com “senhor, senhora”. Porém, pela grande falta de recursos didáticos nas escolas, Cléria diz que os alunos são muito inteligentes, conseguem bolsas em universidades da Europa com muita facilidade pelo seu conhecimento e esforço.
A religiosa descreve que o trabalho nesse país começa cedo para as crianças. As meninas não precisam crescer muito para ajudar a manusear o pilão, ficar horas nos rios lavando roupas e buscar água para a casa. Muitas vezes o galão na cabeça é tão pesado que quase não dão conta de carregar, além de se levantarem 5h da manhã para limpar a casa antes de sair para a escola.
Já a realidade das mulheres nasce da união de diversos contextos, somados as exclusões de uma cultura patriarcal e machista. As moradoras de áreas rurais, ainda estão distantes das conquistas dos movimentos ocorridos ao redor do mundo nas últimas décadas. Elas tem a dupla jornada de trabalho. O acesso precário a informação e a ausência de documentação são verdadeiras barreiras que as impedem de alcançar sua autonomia. Essa desigualdade significa que elas têm menos dinheiro, quase nenhuma proteção contra a violência e o mínimo acesso à educação e à saúde. Cléria lembra que na África as mulheres vivem uma realidade de poligamia, onde os homens chegam ter 4 a 5 mulheres e alguns chegam a ter 20 a 30 filhos. “A lei da pensão alimentícia aqui não existe. Quanto mais mulheres e filhos o homem tiver, mais expressa a sua masculinidade”.
As mulheres carregam seus filhos a partir de 15 dias nas costas, as mães utilizam um pedaço de tecido de algodão, como a “capulana”, que é resistente, leve e fresco, ideal para o clima africano. O tecido é amarrado em torno do corpo da mãe, criando um suporte seguro nas costas para o bebê, que fica confortavelmente posicionado. E assim, deixa as mãos livres, permitindo que a mãe trabalhe, se movimente e realize outras tarefas, sendo que muitas trabalham o dia inteiro com a criança amarrada nas costas.
Cléria chama atenção para a parte cultural, que é rica na diversidade, na expressão da alegria, dos cantos e das danças, sendo que o povo africano é muito festeiro e animado. A crença dos africanos é muito diversificada. É a terra da magia, então existem muitos feiticeiros e acontecem muitos feitiços. Outro fato interessante são os velórios que têm um ritual diferente, onde tem a semana do “nojo”, e ali se oferece por sete dias comida para as pessoas que visitam a família e o filho mais novo fica sentado neste tempo todo em uma esteira, não podendo nem ir ao enterro.
“Em seis meses posso dizer que o processo de adaptação é também um processo cheio de surpresas. Muitas vezes temos uma visão de missão que é totalmente diferente. O missionário deve ter uma grande capacidade de despojamento, ser capaz de relativizar certas coisas e nunca julgar a partir da sua visão de mundo ou do seu ponto de vista. O missionário não deve negar sua cultura, porém ele é chamado a se abrir a uma nova cultura cujos elementos essenciais podem o chocar em um primeiro momento, mas com o passar do tempo acaba se apaixonando pela cultura e pelo povo. A gente só ama o que conhece”, enaltece Cléria, que segue na África cumprindo uma missão profissional, mas também pessoal de ajudar o próximo.








